4 de dezembro de 2007

Contos urbanos da loucura - I

Gosto muito de escrever em prosa. Eu tenho um livro cheio de pequenas estórias. Não são pequenos contos de ficção, mas pequenos trechos de um romance sem fim que é a vida. Hoje estou postando o primeiro de uma série de muitos:













A noiva da cidade barroca


No dia em que Cota e Miro se casaram choveu muito. Os convidados ficaram intrigados porque os noivos resolveram se unir pelos laços do matrimônio numa época tão propícia a grandes tempestades. Dizem que o amor e a paixão embaçam a razão, mas não precisam encharcar os pés e a roupa dos apaixonados. Subir as ruas estreitas até o alto do morro para chegar na porta da igreja foi um esforço quase sobre-humano. Uns diziam nunca, mas nunca mais irei num casamento debaixo de chuva. Outros resmungavam palavrões impublicáveis. Enfim, foi um alívio quando o padre fez o sinal-da-cruz sobre os noivos declarando-os marido e mulher para sempre.
Cota era uma moça muito recatada, franzina, olhos verdes bem claros que pareciam duas esmeraldas, seios pequenos e arredondados; mas o que mais chamava a atenção era sua voz doce e suave. Seu pai era o tabelião da cidade. Um homem austero que fora, no passado, um importante político da região. Andava pela cidade de terno preto e uma gravata larga azul. Não importava se era um dia de calor ou de frio. Era sempre o mesmo terno. Cota era professora de história de uma escola pública. Miro, seu marido, um homem grande, ombros largos, cabeça raspada, sobrancelhas e barba ralas. De onde ele tinha vindo, ninguém sabia; uns diziam, pelas esquinas das íngremes ladeiras, que era do recôncavo baiano ou, quem sabe, do Jequitinhonha mesmo. Era homem de pouca conversa. Suava muito na testa, tinha constantemente nas mãos um lenço branco enorme, que mais parecia uma toalha de rosto.
Depois do casamento, Miro ficou vários anos sem trabalhar. Vivia às custas da mulher. Viajava muito. Ausentava-se da cidade várias semanas, e até meses. Um belo dia, chegou para a mulher e disse:
– Vou me estabelecer aqui na cidade. Acabei de comprar um açougue. Estou cansado de viajar.
E foi realmente o que fez.
Os anos se passaram. O casal era convidado para as festas e as folias. Mas nunca aceitavam os convites. Também não tinham filhos. A única regalia daquela mulher era reunir as crianças e os jovens que voltavam da escola, na porta do seu casarão de portas e janelas compridas, para contar as lindas histórias de príncipes, reis, rainhas e fadas. Sabia como ninguém contar histórias. Terminava o dia, o sol se escondia atrás do morro, a noite chegava mansamente para forrar o céu com seu manto escuro salpicado de estrelas e uma lua prateada quase redonda. E ela continuava noite adentro, contando histórias do sem-fim e das mil e uma noites. Só parava de contar as histórias quando seu marido chegava, vestido todo de branco, cabisbaixo e mudo.
Um dia acordou às quatro da madrugada. Estavam batendo na porta. Levantou-se para atender. Era o delegado de uma cidade vizinha.
– A senhora é a mulher do açougueiro Miro?
– Sim, eu sou a esposa do Miro. Aconteceu alguma coisa com o meu marido?
– Minha senhora, ele foi preso por ordem do juiz. Ele é um jagunço muito perigoso.
Ela olhou para o delegado e ficou repetindo quase balbuciando: não entendo, não entendo, a minha vida era uma solidão, mas agora virou um deserto, e continuou dizendo: não entendo, a minha vida é um deserto a perder de vista.
Hoje vive em Ouro Preto uma mulher que todo mundo conhece como "a louca da vassoura". Anda dia e noite pelas ruas e ladeiras falando alto e sozinha que conheceu a Marília do Dirceu, fez curativos nas mãos do famoso Aleijadinho e sabe quem pôs fogo na cadeia pública, mas não pode contar pra ninguém porque senão terá o mesmo fim de Tiradentes.

0 comentários: