28 de fevereiro de 2013

as tardes

lembro-me do calor
que fazia nas tardes de março
os sanhaços cantavam alegres
no pé de mamão macho
plantado nos fundos do quintal

minha mãe, mandava as crianças
com muito cuidado,
colher os figos bem verdes
para fazer os doces de compota
que enfeitavam a cristaleira
durante todo o ano

meu pai, logo cedo, se irritava
com o barulho da oficina mecânica

na subida da rua sem calçamento
o vendedor de loteria magricelo
gritando feito louco:
olha a vaca! olha o porco!
é a sorte grande chegando!

à noite luzia os vaga-lumes
na beirada do barranco
perto da escadaria do morro

ao sair da minha cidade
para procurar espaço e liberdade
o meu corpo ficou exposto à solidão
e a minha alma se apegou às memórias

26 de fevereiro de 2013

vício

já me alimentei
de utopia
como os pássaros
de farelo,
os morcegos
de frutas
e as galinhas
de milho

quando a minha idade
pedia liberdade
meu país era ditadura
faminto de palavras
embebeciam-me de silêncio
desejoso de espaço
proibiam-me lindas canções
pior do que não ter é não poder ter
às vezes morrer é melhor que viver
onde não se pode nada

a vida só boa
quando há fartura
travessia, agora e eternidade

utopia demais alivia
e sustenta por um tempo,
um bom tempo,
mas machuca a alma
e torna-se vício

25 de fevereiro de 2013

haicai

o vento da tarde
derruba as folhas secas
do abacateiro frondoso

21 de fevereiro de 2013

terra natal

quando eu te deixei
eu só queria tem espaço
ganhar o mundo
atravessar fronteiras
eu só queria viver
e correr distâncias
conhecer tudo que não conhecia
sentir os prazeres das noites alheias
e os sabores dos dias quentes
por isso te deixei para trás
peguei o primeiro trem
sem destino marcado ou preestabelecido
naquele tempo tudo era urgente
a minha juventude exigia pressa
e o país vivia debaixo da ditadura
eu não queria só liberdade
queria ser livre como os pássaros
eu não queria só promessas
queria terra, eleição e pão

agora muitos anos depois
tuas ruas não me conhecem mais
tuas esquinas esqueceram de mim
mas eu não esqueci de nada
as minhas lembranças são vivas
cada paralepipeto do calçamento
esconde uma lágrima de saudade
parece que nunca fui convidado
para a festa dos filhos ausentes
o meu amor por ti dura para sempre
mas o teu amor por mim
as águas do rio doce
levaram para bem longe
lá onde o mar e o céu se encontram
e só as nuvens podem presenciar

já morei em muitos lugares
mas nenhum tem o teu clima,
a tua lua, a tua serra e as tuas noites
e onde fui mais feliz em toda minha vida
por isso nunca se esqueça de mim
saudade é muito bom, mas às vezes, fere

13 de fevereiro de 2013

falida

somos orientados suportar
o mal dos outros,
mas, infelizmente
incapazes aceitar
o mal que fazemos
a nós mesmos,
a poesia não vai
endireitar o mundo;
no entanto, mesmo assim
continuo o meu ofício

na vida, não existem
receitas prontas,
são sempre bulas
com as letras miúdas,
que nos ensinam a viver
quando a vida já passou
a tragédia que poderia
ter sido evitada,
que já estava escrita
nas estrelas
e ninguém leu
nem olhou para céu

a sociedade faliu
porque não sabe mais
que a claridade
é apenas nuance
de sombra e de luz

7 de fevereiro de 2013

haicais

a chuva forte
derrubou a árvore
no meio da rua

 
à tarde, o vento
levantou toda poeira
que estava no asfalto


a lagoa lá no fundo
parece um espelho brilhante
quando o sol vai se esconder

5 de fevereiro de 2013

o rio, quase doce


alivia sim,
mas não conforta,
ver que o Rio Doce
ainda corre para o mar
embora saiba que em suas águas
não há mais tantos peixes

pensar que meu pai e eu
pescávamos com varas e anzóis
no remanso debaixo da ponte

3 de fevereiro de 2013

A festa não acabou

Foto do site: http://g1.globo.com



por detrás da fachada
os jovens procuravam festa,
lerdo engano

a morte espreitava
no labirinto da escuridão
a fagulha que se acendeu
no palco não iluminou
o caminho da saída
porque o descaso
foi tamanho que não deixou saída

o sonho de arquiteto,
desabou
o desejo de agrônomo,
murchou
e o carinho de veterinário,
acabou

1 de fevereiro de 2013

haicais

guardo nos olhos
o que minha boca
não pôde provar


sou um pequeno rio
que deseja ardemente
as profundezas do mar


 ninguém fica impune
à beira de um rio
apesar de nada mudar


 olhando a chuva
parece que o céu
está em pranto e dor